A mediação imobiliária por detrás do pano

25 de março de 2023

Como é que as imobiliárias funcionam na prática? Como é que criam especulação? Porque é que as comissões são altas? Porque é que a maioria dos clientes sente que o serviço não acrescenta valor? Porque é que há tantos (e maus) consultores imobiliários?

Um dos mais célebres insights na teoria da gestão, de Peter Drucker, um visionário que mudou o discurso das empresas em 1973 com o seu livro “The Practice of Management”, dizia que uma empresa tem um único propósito: criar um cliente. Em 1973, Drucker estava à frente do seu tempo. Em 2023, as agências imobiliárias são iguais ao que eram em 1973. Criaram, não um cliente, mas um consumidor: o consultor imobiliário, oferecendo-lhe incentivos que não evoluíram de acordo com as circunstâncias atuais.

Estes incentivos contribuem para a atual crise na habitação e para o desnorteio, falta de sentido de direção e de prestação de serviço na vida de milhares de profissionais do setor.

Este artigo dará resposta a quatro questões essenciais para desvendá-los:

Como é que as imobiliárias funcionam na prática?

Como é que criam especulação?

Porque é que as comissões são altas?

Porque é que a maioria dos clientes sente que o serviço não acrescenta valor?

Porque é que há tantos (e maus) consultores imobiliários?

Disclaimer: Haverá certamente profissionais comprometidos com princípios e métodos distintos, ou até opostos, daqueles que serão descritos. Há exceções e há também clientes alinhados e satisfeitos com as diferentes formas de estar e de trabalhar, razão pela qual a diversidade é salutar. Este texto não é uma crítica a nenhum modelo em específico ou empresa, é antes uma dissertação de incentivos comuns às agências de mediação imobiliária em Portugal, conhecidos por quem está dentro do setor, e uma perspetiva dos seus efeitos no mercado imobiliário e na habitação.

Se observarmos uma típica agência de mediação imobiliária os seus incentivos são, praticamente todos, assentes em: escassez, competição, pouca transparência, conflitos de interesses, foco nos lucros da agência e das marcas internacionais, quantidade em vez de qualidade, rotatividade de consultores, rankings, stress, incerteza, baixo investimento no cliente versus elevado investimento na marca, frustração de expectativas, especulação, irresponsabilidade, instabilidade, insatisfação. De modo a sustentar este sistema de profunda escassez, as marcas investem fortemente em publicidade e recrutamento. O gestor de números não se interessa por saber se funciona para as pessoas, mas sim se para a máquina funciona. Esta escassez é alimentada através de esquemas de incentivos que apenas servem as marcas e exploram os clientes e os consultores, com elevados prejuízos sociais. Os consultores não sentem que respondem às suas próprias orientações e expectativas, mas sim às dos seus gestores. Por seu lado, os seus gestores são pessoas que só falam em números. Como é que se inspira uma equipa dando prioridade aos números e aos rankings sobre as emoções das pessoas?

No geral, os consultores trabalham em agências com elevadas comissões atraídos, sobretudo, pelo dinheiro que podem ganhar. Estas elevadas comissões são necessárias para compensar a incerteza, a ineficiência e o stress a que os consultores estão sujeitos e para proporcionar às marcas elevados lucros e permitir o re-investimento em ações de motivação, reforço de posição da marca no mercado e constante recrutamento. Afinal, o negócio das redes de agências internacionais é vender “sonhos”, através de formação para formatar os consultores a perseguir os objetivos da marca e vender produtos de marketing da marca. Os seus consumidores são os consultores e não os clientes compradores/proprietários de imóveis.

Cada consultor é incentivado a alcançar resultados, que dependem de objetivos de angariação e prospecção com métodos que incentivam o medo nos clientes. Medo de perder dinheiro por não saber determinar o preço do seu imóvel, medo de perder o momento, medo de perder oportunidades, medo de ser enganado pela outra parte. Depois de captar a atenção de um cliente que tem simultaneamente uma necessidade e medo, o consultor tem de mostrar ao cliente que a sua marca é muito conhecida e que o vai fazer ganhar muito dinheiro. É uma manobra de manipulação para reforçar o poder da marca e retirar autoridade ao cliente. Muitas vezes cria-se um jogo de poder entre o consultor e o cliente, uma negociação entre os dois, em vez de uma relação de confiança, compromisso e serviço.

É este jogo de poder que o consultor é treinado a fazer, pela sua marca, para conseguir angariar um imóvel num mercado altamente competitivo. O consultor tem de competir com milhares de outros iguais a si, incluindo os colegas de agência, o que é altamente gerador de ansiedade e contraproducente. É até aceite por alguns clientes a ideia de “competição saudável”. A competição nunca pode ser saudável ou benéfica na prestação de um serviço que se requer personalizado e de elevada confiança, importância e integridade, até pelo impacto que tem na vida das pessoas. Neste jogo, o consultor cede ao desejo irrealista do cliente e faz, ou propõe ele mesmo, a angariação muito acima do preço real de venda, dizendo ao cliente que tem clientes internacionais e que consegue um preço mais elevado. Sabendo que, mais tarde, poderá ter que vender muito abaixo desse preço, sem se preocupar com o impacto que tem nas expectativas no mercado.

É neste primeiro incentivo que nasce a especulação imobiliária e todo o mercado tem prejuízo, excepto as agências, que muitas vezes acabam por vender abaixo do preço ótimo, quando o cliente já não tem tempo. O facto de o consultor receber uma percentagem do preço final não é incentivo suficiente para defender o preço, não apenas porque nunca o conseguiu fazer corretamente, mas também porque a perda potencial de não fechar o negócio e receber a sua comissão é muito superior a umas centenas de euros a mais ou a menos. Este incentivo causa insatisfação no cliente submetido a elevado stress, que só quer terminar o processo e iniciar um novo ciclo na sua vida. Há a perceção de que a imobiliária foi um mal necessário e que o stress é proveniente da ameaça da outra parte e não da agência, pelo que, sozinho ou com uma agência mais pequena, “podia ter sido pior”. A falta de autoridade pessoal do cliente leva-o a escolher marcas que lhe transmitem poder, ainda que essa imagem de poder mascare uma enorme fragilidade. Quanto mais fortes por fora, mais fracas por dentro.

O segundo incentivo do modelo tradicional é a falácia da partilha das comissões entre agências. As imobiliárias dão-se o direito de cobrar ao cliente proprietário pelo trabalho que é feito por duas agências distintas, definindo se, e quanto, é que a outra agência irá receber. Não só este princípio é extremamente arrogante, como não funciona e frustra os negócios, no sentido em que impõe uma negociação e uma transação entre agências que não estão de acordo em 100% dos casos, eliminando à partida potenciais visitas ao imóvel. Este sistema tira ao consultor o foco da venda do imóvel para perder tempo com trocas de emails e protocolos de parceria, que não são mais do que uma transação em paralelo. Em vez de debater acerca da percentagem que cada um considera mais justa, convinha que cada agência cobrasse a sua comissão ao seu cliente, eliminando assim qualquer conflito de interesses. É fundamental que cada agência possa selecionar imóveis para o seu cliente comprador com total independência, cobrando ao comprador pelo seu serviço. Não conseguir fazê-lo é constatar que o comprador não reconhece valor no seu serviço e que não está disposto a confiar naquele consultor. O que levanta uma questão de credibilidade e qualidade de serviço prestado, que cabe ao cliente avaliar e escolher, consoante a proposta de valor que lhe for apresentada. Por outro lado, a partilha de comissões com indivíduos ou entidades detentores de licença AMI legitima a obtenção de licença meramente para recebimento de uma comissão de intermediário, sem que exista a prestação de um serviço de mediação às partes.

Com vista a obter o máximo lucro, o consultor tem ainda o incentivo para ficar com a comissão por inteiro, o “pleno” na gíria das agências. Se pode receber o dobro pelo mesmo negócio fechado, ficando mais perto dos objetivos de faturação que o incentivam, porque há de receber metade? O interesse dos clientes está imediatamente comprometido, sem qualquer benefício para o cliente proprietário do imóvel, que paga na mesma os 5% ou 6% independentemente de como esta comissão será distribuída. Depois do incentivo de receber o dobro, o consultor tem incentivo em manter a comissão na sua agência, para esta ficar bem posicionada nos rankings e obter reconhecimento através de prémios. Este é o terceiro incentivo.

Enquanto o cliente espera que o consultor esteja a fazer tudo para vender o seu imóvel pelo preço com o qual se comprometeu, o consultor já está focado em angariar mais imóveis para cumprir os seus objetivos de número de angariações, pois sabe que, como o fez acima de preço, alguns imóveis vendem-se, mas outros não. Um consultor não poderá oferecer um bom serviço a mais de três ou quatro clientes em simultâneo. Qualquer consultor que o faça está meramente à espera de contactos. Os contactos provenientes de outros consultores é travado pela barreira dos registos. Em primeiro lugar, devido ao terceiro incentivo; em segundo lugar, porque sabe que os consultores que o contactam não têm do seu lado incentivos certos para ter um comprador devidamente qualificado. Do outro lado estão habitualmente consultores “jogadores de raspadinha” - aqueles que não têm uma relação sólida com um potencial comprador, não podendo designá-lo como cliente, mas procuram registar em seu nome potenciais compradores, no sentido de poder cobrar a sua percentagem ao proprietário do imóvel cliente da outra agência se estes compradores vierem a adquirir um imóvel.

Chegamos ao quarto incentivo das agências: o registo do “seu cliente” através da indicação dos quatro últimos dígitos do telemóvel noutras agências. O sistema da partilha não é limitado a consultores imobiliários, estendendo-se a toda a espécie de parasitas intermediários, que são pessoas que se colam a compradores sem acrescentar qualquer valor. Por vezes, sem o cliente conhecer a sua intenção. Há, no entanto, compradores que apoiam esta prática, ajudando o amigo ou amiga a receber uma comissão, achando que não estão a perder nada com isso porque “é o vendedor que paga”. Ilusão. A agência contactada pelo jogador da raspadinha de quatro dígitos fará tudo para conseguir um pleno (ainda que o negue até à morte) pelo que vai logo verificar se tem o potencial comprador na base de dados, ainda que tenham decorrido meses ou anos desde o último contacto. Estes consultores acabam também por gerar entropia aos processos, devido à inexperiência e insegurança com que se apresentam, e dificuldade de comunicação.

Neste jogo, os clientes são ativos, com os quais se especula e transaciona futuros ganhos, e não seres humanos com necessidades a atender.

São modelos de incentivos estabelecidos numa época em que a informação não era tão acessível e era necessário alguém deslocar-se a uma agência para que os consultores estabelecessem contacto entre si, à distância. As agências eram suficientes e os consultores profissionalizados, mantendo-se na função durante largos anos, com a formação e acompanhamento necessários. Em 2005, quando iniciei funções na mediação imobiliária, realizei um exame para aceder à profissão e, há 18 anos, considerei os requisitos e o grau de dificuldade demasiado baixos. Atualmente, o único requisito de acesso a uma licença imobiliária é o pagamento anual de uma taxa de 265€ e um seguro de responsabilidade civil com um custo inferior ao da licença. Por que é que atualmente não se exige uma estrutura e formação realmente úteis ao cliente, em áreas técnica, financeira, processual e legal? A formação de base das redes imobiliárias continua a ser maioritariamente comercial, o que apenas visa fazer angariações e levar o cliente ao fecho. Por outro lado, como pode o IMPIC vender licenças para legitimar uma (partilha de) comissão de um negócio ocasional? A falta de barreiras à entrada é o quinto incentivo.

Neste momento existem 9.472 licenças ativas, das quais 3.048 no distrito de Lisboa (Fonte: IMPIC). Uma só marca diz ter 10.000 consultores - número que supera o número de licenças atribuídas às agências em todo o país - distribuídos pelas suas agências, com algumas, em Lisboa, a ultrapassar os 100 consultores. O que andam milhares de consultores a fazer? De que vivem? Por que razão vemos estes agentes a saltar de marca em marca em poucos anos? É necessário terem uma enorme resiliência para abraçar uma marca, sentir frustração quando não mais se identificam com ela, terem coragem de a deixar e começar do zero, para voltarem a sentir a frustração de trabalhar num sistema que não é sustentável para alguém que procura colaboração e só encontra competitividade. Que consciência e integridade têm estas marcas através de uma estratégia de recrutamento agressivo, baseada no insucesso e rotatividade dos seus consultores? É o sexto incentivo.

A resposta está no incentivo seguinte. Cada vez que recrutam um novo consultor, este trará pelo menos uma angariação da sua rede de contactos mais próxima - familiares ou amigos - que o querem ajudar e sentem que terão ao seu lado alguém de confiança. Mas não ajudam. Da próxima vez que pensar em entregar a sua casa a um amigo ou familiar, ou até mesmo a uma cara conhecida nas redes sociais, assumindo que os consultores e agências imobiliárias são todos iguais e nele ou nela confia porque é seu conhecido ou porque tem boa impressão a nível pessoal, lembre-se que não deixa de ser ou parecer uma excelente pessoa inserida num sistema com os incentivos errados e num mercado altamente egocentrado. Este é o sétimo incentivo.

Quando acreditamos que algo está bem porque sempre funcionou assim, não há motivação para melhorar. A velha expressão “ver para crer” reflete a dificuldade em aceitar algo como possível e verdadeiro até vermos acontecer. Será possível uma mediação imobiliária que realmente esteja ao serviço, que seja uma autoridade no que faz e não apenas mais uma, que proporcione valor ao mercado e ofereça confiança em vez medo, e transparência em vez de especulação, comissões alinhadas com a real proposta de valor e não com a compensação de ineficiências e da necessidade de recrutamento e formação de massas? É possível, ainda que seja mais difícil produzir uma externalidade positiva até que todo o setor possa funcionar com os princípios e incentivos certos. Difícil porque há quem lucre muito com estes sistemas e o lobby das grandes marcas tem poder, poder este que lhes é dado cegamente pelas crenças dos clientes. A questão não é se as agências imobiliárias que mantêm estes modelos vão sobreviver, a questão é até quando. A sua presença não retira mercado às agências pequenas, apenas lhes torna o trabalho mais difícil e desnecessariamente mais dispendioso para os clientes.

Uma característica da inovação é que, ao invés de partir da crença, um inovador parte de uma posição de curiosidade e possibilidade e reforça a sua autoridade através da sua integridade e coerência, recusando-se a seguir as regras instituídas e a alinhar em competição e em jogos de poder.

Uma empresa líder não é a que tem mais colaboradores nem a maior quota de mercado, é uma empresa que guia os outros, que mostra um novo caminho e que tem o seu próprio sentido de direção. Servir é a atitude mais nobre de qualquer empresa.

Será com uma agência assim que clientes, promotores e consultores podem sentir-se ouvidos e suportados e não compactuar com um mal necessário.

“Those who initiate change will have a better opportunity to manage the change that is inevitable. - William Pollard

Sandra Viana

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